Carcinoma estréia em Manaus

                               



CARCINOMA ESTREIA EM MANAUS
apresentação na Fundação CECON


 



Fotos| ChicoKáboco








Fotos| Luis Monsuebo



O FIO DA VIDA                                                    
*Jorge Bandeira 

(Dedico este texto à minha querida Tia Pepita Bandeira, que não conseguiu bater o sino)

O som da rabeca mistura-se com o diagnóstico,  entre o deitar e o levantar-se a atriz é exposta na sua personagem da vida real, linha tênue entre a arte e a vida,  a vida é distorcida, remexida de uma hora a outra, num lugar e circunstâncias tão comuns, infelizmente, em nosso país. A vida resumida a um nódulo calcificado, as mudanças são enormes, gigantescas. É a ultrassonografia do inesperado, do não desejado, e nisso, ao longo dos 35 minutos de Carcinoma, somos atravessados e atravessadas pelo estridente som da rabeca, num salto somos tragados para o cotidiano do tratamento, entre o medo e o choro. 

Existe uma vida após a biopsia, o corpo ganha ares de biomecânica, a prótese e a mastectomia necrosam o corpo, mas a alma insiste levar este teatro da vida à frente, mesmo que as punções sejam dilacerantes. Enquanto há vida, há esperança, e isso não pode, jamais, ser um chavão. 

A narrativa penetra como uma agulha para levar este medicamento dramatúrgico, com extrema responsabilidade e fora dos inevitáveis vitimismos o solilóquio revisita a situação do câncer, seja em homens ou mulheres. Carcinoma é Teatro de utilidade pública, em meio às dores, temos a interpretação segura de Cláudia Toledo. É um teatro fruto da pandemia, e o didatismo capitular torna a compreensão do espectador fluída, sem barreiras. 

No palco, este O Fio da Vida numa plaqueta brechtiana, um jogo de pisca-pisca, uma maca e alguns ex-votos que representam as provações pelas quais este corpo irá passar durante esta sessão teatral, existencial. 

O Tempo é colocado como uma ampulheta da areia dos elementais, passageiro e célere, a areia do incansável tempo, onde um novo ciclo se apresenta. A Cirurgia chega rápido, mas como dói, como dilacera, os bonecos de papel estão lá, feitos com a tesoura da vida, cortante e certeira. Família e equipe médica presentes, memória e sofrimento, porém a superação das etapas tornam a encenação não pessimista, sutil. Sutileza é palavra certa para entender o ganho de causa estética que fazem da direção artística e da cenografia de Nonato Tavares pontos seguros de um Teatro de comunicação imediata com o público, sem excessos desnecessários, sem vitimismo ou panfletário no seu trabalho de cena. Tudo é dosado, como a precisão de uma dosagem de quimioterapia ou radioterapia nas circunstâncias em que o tema principal de Carcinoma exige. Chamo isso de responsabilidade ética e social. O sono não é a morte, o vácuo preenchido por uma espécie de arauto e oráculo na voz off,  ecos distantes da esperança, que jamais abandona este palco, tornam tudo sensível, simples, direto e urgente, e mesmo nas narrativas mais viscerais somos colocados no vagão como espectadores de uma obra repleta de poesia e ludicidade. A Quimioterapia chega, e nesta apresentação aqui em Manaus, em 17 de setembro de 2022, no Espaço Sintel, no bairro de Aparecida, gatos brigam por sob os telhados, o que parece ser a ocasião e circunstância perfeita para pensar na intromissão de drogas no corpo, como se a analogia da briga destes felinos fosse como a briga do corpo contra as células malignas, num ocaso e mistério da vida que se supera e transforma-se em Teatro. 

A sutura cênica feita com fio vermelho, a droga injetada na veia, rasgando tecidos, luzes que aparecem como a iluminar a dor e anestesiar os sentidos, o soro, o ar em falta, a  respiração trôpega. A alucinação medicamentoso ganhando ares de boate, numa tentativa de fugir desta incontornável dor. Esta mulher agora careca, como num absurdo teatro de Ionesco, eis A Cantora Careca que apareceu depois destas químicas todas. Ela canta, seus acalantos atravessam nossas memórias, especialmente de quem já perdeu alguém querido ou querida para o câncer. 

Um pranto que nos martela os ouvidos, onde se "sente semente brotando, corpo, alma, mente, desnuda, aberta, incerta, eu canto...". Tudo aqui é superação, é não procrastinar, é prosseguir, é viver, é amar. O tempo transcende, e nem tudo é para sempre. Corrijo para: o Teatro transcende e nem tudo é para sempre. Há poesia em Carcinoma. A vida louca vida de Cazuza nos chama para superar a agonia. 21 dias onde quase tudo se esfazia e até transborda de tanta dor, de agônica espera por um resultado, por uma melhora, por uma estagnação da doença. A espera desespera. 

Mãos cênicas, carcomidas, coçam, deslizam, UM DIA DE CADA VEZ,  insiste a atriz, a paciente. Paciência. É muito fácil para quem está de fora querer que a doente seja forte, por isso este Teatro, esta montagem teatral, alertando que estamos todos e todas sujeitos a tudo isso vivido e revelado magistralmente na interpretação de Cláudia Toledo. 

O cantar sustenta a vida. No coçar, doer, arder, latejar, pinicar, na vertiginosa passagem deste tempo tudo está em transformação, dentro e fora de cada um de nós, doentes ou sadios. A descoberta da nova imagem, o que existe por trás desta cabeça careca? Novos sinais de vida. O batom chama à nova vida. As inconstâncias do tratamento nesta A Insensatez, após o 8o dia a rêbordosa, tudo dói,  choro e tristeza, enjoos, evacuação, tudo fica dentro desta linha tênue entre o equilíbrio e a insanidade. O corpo e a alma calejados pelo tratamento caem num abismo, numa espécie de assombrado labirinto, um quebra-cabeça da existência. 

O som mecânico, um batuque, um atabaque, um som de coração pulsando, de jorro de sangue, um jato de sangue de Antonin Artaud, talvez uma bela crueldade? Um dia de cada vez,  reverbera a frase, neste jogo inesperado que é o nosso viver. Existir é mergulhar e emergir. Eu revigoro em minha própria medida, em meu próprio limite. Ao longe escuto algumas ressonâncias magnéticas de um curioso sino, forjado por um Deus, Vulcano, nesta mitologia mágica de Carcinoma, da Cia. Visse e Versa, de Rio Branco, Acre,  trabalho em parceria frutífera com a Cia Vitória Régia , de Manaus. 

Cláudia Toledo realizou a atuação, dramaturgia e figurino. 

Nonato Tavares fez a direção artística e a cenografia. 

Lenine Alencar fez a assistência de direção, a produção e a operação de som. 

A criação sonora e direção musical ficou a cargo do Diogo Soares. 

Os efeitos sonoros foram obra do Pedro Cruz (rabeca) e do Mestre Matraca (atabaque).


*Jorge Bandeira, espectador de teatro em direção ao Jandira. 


Manaus, 21 de setembro de 202

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