Salão de Exposições do SESC                                                     









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                         CARCINOMA DO INCOMÔMODO (E) DA ARTE                               
                                                  João Veras 03/10/22

Semana passada estreou em Rio Branco a peça Carcinoma, monólogo de Claudia Toledo, que tem a direção de Nonato Tavares, assistência de Lenine Alencar e trilha sonora de Diogo Soares. O espaço das duas primeiras apresentações foi o salão de exposições do Sesc-centro. As demais estão agendadas, neste Outubro Rosa, para hospitais públicos da cidade de Rio Branco. 

Em Carcinoma, Claudia relata a sua jornada de quando enferma desde o diagnóstico até o penoso processo terapêutico que vai culminar com a cura. É o registro de uma sobrevivente de um fato em vida inacabado como mácula de memória e de corpo. 

A narrativa dessa experiência poderia ser um retorno ao médico, um relatório, um depoimento, uma entrevista para um estudioso da saúde, para um jornal, para uma tv, uma sessão de terapia… mas é teatro. Na peça, o espaço do incômodo é o mesmo do cênico, onde vida e arte parecem não se distinguir de tão um só intenso. 

O incomodo, o desagradável, o desconfortável, são sentidos considerados aliados quase sinonimicamente à ideia de feio, que é oposta a de belo, esta, por sua vez, como algo ideal, o diverso daqueles, do incomodo, do feio. E a arte como o lugar do prazer, do agradável, do belo, do ideal e do entretenimento, enfim; mas do incomodo e seus aliados não. 

Carcinoma é de fato uma peça do incômodo, disposta a não entreter. Por este intento e compreensão, serão justamente estas qualidades que irão albergar a sua condição de arte, numa concepção diversa da do senso comum enquadrado pelas pedagogias da estética padrão escolar, portanto, redutoras, pela dicotomia belo x feio, do que é, em essência, produto criativo da diversidade do próprio, a alteridade desse ser subjetivo/concreto que somos nós os humanos, um a um. 

O que vi no palco pode ser traduzido na formalização da ideia de arte não como expressão literal do belo e do prazer (dessa suposta satisfação monolítica do viver pleno), mas da consciência da incompletude, portanto da falta, que só a experiência do incomodo pode proporcionar, quando expressa pela linguagem estética. Este escrito é a respeito dessa experiência do incomodo que a obra produz, sobre a qual eu precisava trazer até aqui, pelo olhar dos meus, a fim de conseguir ver mais do quanto o que lhe constitui. 

Comecemos pelo nome da peça – Carcinoma - que já é em si um mal-estar, pela sua violenta literalidade, para quem sabe do que se trata. O nome é o real referido sem adorno, sem metáfora. Também para quem não sabe, porque não diz nada, do tipo daquilo que passa despercebido como um cartaz de campanha de saúde colado na parede do posto cheio de nomenclaturas técnica-científicas em meio a apelos clichês redundantes. 

Pelas duas visões (a do saber e a do não saber), suponho que não impressione, não cative, não produza interesse. Para alguns, a ojeriza se impõe na frente diante do que se expresse mais como coisa burocrática compromissada com didática da esfera de utilidades da educação sanitária, essas coisas chatas, todavia extremamente vitais, das quais, por incomodar, todos se afastam, não dão atenção. De modo que, nenhuma delas consegue perceber ante o mal-estar epistemológico que Carcinoma não é campanha, é teatro. 

O segundo incômodo ocorre quando se adentra na obra. Quando se assiste é quando afeta, toca, abala, move os que sabem do que se trata a coisa nomeada. Quem já passou e está passando pela fática experiência é atravessado tal como uma agulha grossa entrando músculo adentro num tempo eterno sem querer voltar. Quando a dramaturgia em si se apresenta carregada de uma realidade à beira do insuportável que é se relacionar com o abismo da morte, a possibilidade do fim e no meio disso a concretude da dor ali se processando naquele corpo e naquela alma que se desgarram indignamente de suas autonomias humanas. É uma dramaturgia do conviver de frente, portanto, do anti silêncio senão da zoada da descrição, da narrativa e da reflexão sobre esse algo - do que tanto não queremos suportar - chamado tormento. 

O terceiro incômodo será também sentido quando se assiste a peça. Quando a dramaturgia se oferece para além do texto e passa a ser teatro por si, com tudo que se espraia e se expressa pelas e nas escolhas e execuções dos movimentos inquietos do personagem/corpo/da atriz/corpo sensorialmente impacientes; do espaço cênico hospitalar que fala, que dar ordens e faz de conta que ouve; das vestes de tons beges em suas mensagens melancólicas; dos utensílios brancos e suas formas fantasmagóricas em artérias vermelhas como em véus de luto porque rosa; das luzes abertas para que tudo seja alcançado sem escuro algum e também da trilha sonora despedaçada em rangidos harmônicos pontuais, de contrapelos melódicos persistentes e grunhidos em ritmos fatais, como agulhas em oficio vacinal, rumo ao jardim do éden da resistência à dor. 

Estou a tratar de incômodos os quais se prestam a não reduzir o produto cênico ao verbo como um discurso entrando no juízo, tal redemoinho inescapável que o nome da coisa instala e conduz. Daí meu interesse em perseguir, em simultâneo, pelos caminhos das imagens, dos movimentos e dos sons que nos levam à totalidade da cena, isto é, a um produto teatral. 

Para mais além das formas, frente à reelaboração pública de uma história tão particularmente vivida, não é possível deixar de ser tocado pelo efeito solidário intrínseco à obra em sua função social, efeito esse do tipo que alerta o outro com um íntegro: se cuidem, comigo foi assim!

Serão esses materiais e dispositivos estético-dramatúrgicos do incômodo que irão nos possibilitar distingui uma coisa da outra. Fazendo com que seja possível perceber que uma experiência vivida possa, por se operar pela arte, manejar a transformação da dor sentida em beleza percebida, sob o ponto de vista estético e também ético.